domingo, 8 de agosto de 2010

A fórmula da Felicidade


A banda desenhada alternativa, ou independente, ou iconoclasta, ou pessoal ou (auto)reflexiva nunca deixou de ter espaço em Portugal. Sempre em fanzines ou em projectos que cruzavam outras artes plásticas, institucionalmente a partir da actividade da Bedeteca de Lisboa. Da Chili com Carne ao Venham + 5, passando pela Imprensa Canalha, Mmmnnnrrrg, Gambuzine e Opuntia Books, entre muitas outras publicações e ideias, a sua presença recente (com cambiantes) é óbvia. Como todas as formas de BD tem qualidades e limitações, paladinos e detractores, obras e poses. Ninguém pode é dizer que está pouco desenvolvida entre nós. Pelo contrário. O que ainda não aconteceu na BD nacional foi o usar elementos cultivados nessas coordenadas para criar histórias interessantes que transcendam os nichos e cheguem a um público alargado, revolucionar o "mainstream". Exactamente o que fizeram autores francófonos como Sfar, Trondheim, Larcenet ou David B.. Na verdade é pior do que isso, no sentido em que falta o "mainstream" português, apenas avistado aqui e ali; de tal modo que nos chegamos a entusiasmar com obras meramente competentes. Que dizer então quando surge um trabalho mesmo (mas mesmo) bom?

A fórmula da felicidade (Nuno Duarte e Osvaldo Medina) é uma surpresa quase total, não fosse o reconhecimento imediato da opção gráfica tomada. É certo que no uso de animais antropomorfizados há influências de fábulas clássicas, mas é também evidente que essa influência se faz via a série Blacksad, quer em termos do traço de Juanjo Guarnido, quer no modo como Antonio Diaz Canales usa "características" dos animais para definir visualmente as personagens, sem dar atenção a possíveis incongruências. Que uma égua tenha como amante um tigre e seja mãe de um cão, o qual, por sua vez, tem interesse amoroso por uma gata e é vitimizado por um boi é muito menos importante do que vincar simbolicamente que uma é viciada em "cavalo", outro um predador, outro leal e inteligente, outra emocionalmente distante, o último um bruto acéfalo. No entanto, se não se podia deixar de referir Blacksad, é igualmente justo dizer que A fórmula da felicidade vai numa direcção distinta, a distância entre um policial hard-boiled "concreto" e aquilo que é, de facto, uma fábula.

O ponto de partida lembra o "sketch" dos Monty Python no qual se inventa (para fins militares...) uma piada tão engraçada que toda a gente morre (literalmente) a rir quando a ouve. Neste caso o jovem prodígio Victor sempre se refugiou no estudo, e concretamente na beleza da Matemática, para transcender as limitações de uma vida familiar e social difíceis. O seu entusiasmo/amor pelos números é evidente, como evidente é a dificuldade em o transmitir a alunos que apenas pretendem que o "programa" se cumpra, ou a amigos e conhecidos para quem o significado profundo das equações passa inteiramente ao lado (a Sociedade Portuguesa de Matemática devia prestar atenção a esta BD). Até que um dia, ao desenvolver trabalho prático para a sua Tese, Victor consegue o impossível: representar quantitativamente a felicidade através de uma equação matemática. A qual, quando dita em voz alta, induz em quem a ouve um estado de mais pura exaltação, independentemente (e aqui entramos no domínio da fábula) de o visado perceber aquilo que a fórmula representa. Como um poema sublime numa língua incompreensível que, no entanto, apenas parece ganhar alma pela boca do seu criador.

O resultado deste milagre matemático é o desenvolvimento lógico de uma premissa que não o é tanto. Multidões anónimas rumam à casa de Victor, buscando aliviar a sua existência diária através de leituras da fórmula, prestando culto a uma força que não entendem. Por outro lado, o que antes era apenas um curiosidade indemonstrável tornou-se agora um claro e apetecível instrumento de poder. Como todos os Profetas involuntários Victor pasma e contorce-se com a revolução no seu mundo, hesitando entre opções e oportunidades. O argumento de Nuno Duarte tem a inteligência subtil de mesclar complexidade com singeleza de modo a que o óbvio nunca o pareça. E que dizer do traço de Osvaldo Medina? Decorativo? Bonito? Correcto? Eficaz? Directo? Ao serviço pleno da narrativa? Tudo isso, e brilhantemente. Às vezes no meio nacional dá ideia ser quase pecado fazer este tipo de BD, quando é a que faz mais falta, até pela raridade (Rui Lacas é outro autor a citar a este nível). Depois de alguns projectos interessantes (mesmo considerando as suas limitações) Mário Freitas e a Kingpin têm aqui, em potência, a sua primeira grande BD. Falta "apenas" a segunda parte (no fundo, conhecer como os autores abordam o final) para confirmar esta impressão.

A fórmula da felicidade 1. Argumento de Nuno Duarte, desenhos de Osvaldo Medina, cores de Ana Freitas, Gisela Martins e Jorge Coelho, desenvolvimento matemático de Filipe Oliveira. Kingpin Books, 46 pp., 12,95 Euros.


Infelizmente ainda não o consegui arranjar em Portugal

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